Intelectual da Sociologia e da Administração, Nelson Mello e Souza continua ativo aos 92 anos. Está preparando um novo livro, análise nada ortodoxa sobre a vida e obra de Karl Marx. Também tem na manga, pronto para ser lançado, um trabalho sobre o escritor Franz Kafka.
Membro da Academia Brasileira de Ciência da Administração, Mello e Souza foi um dos fundadores da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE/FGV) e da Fundação Roberto Marinho, além de diretor de planejamento da Organização dos Estados Americanos (OEA).
RBA: Quais são os livros que o senhor está escrevendo agora?
Nelson Mello e Souza: Tenho pronto um trabalho sobre Franz Kafka, que me custou muito. Estou há quase 20 anos para elaborar e ainda falta uma pequena atualização. E estou agora com um trabalho sobre a vida e a obra de Karl Marx. Este ano é o bicentenário de Marx e, embora ele já não tenha mais a importância que teve há 40, 50 anos, continua influindo, inclusive no Brasil.
RBA: O senhor faz uma análise sobre a obra de Marx?
Nelson Mello e Souza: Não é uma análise ortodoxa. Tenho muita dificuldade para aceitar tudo o que Marx diz. A grande influência dele foi no Século XX, mas ele era um pensador do Século XIX, quando a estrutura industrial dominada pelo setor privado, o chamado Capitalismo, era bárbara, porque era uma coisa nova, ninguém sabia como lidar com aquilo. O operário era o imigrante rural do sistema feudal antigo, que foi se dissolvendo. Muitos daqueles imigrantes foram para as cidades em busca de trabalho.
RBA: Essa é uma realidade a partir da revolução industrial?
Nelson Mello e Souza: É a realidade que Marx viveu, completamente diferente da nossa. Uma das teses centrais de Marx é sobre o trabalho produtivo e nós vivemos do trabalho criado pelo operário. Se o operário faz uma greve geral, para a produção, todo o mundo morre de fome. E não é assim, essa é uma grande simplificação.
Depois ele corrige e introduz o conceito de gerência. Ele diz que se o capitalista não for um homem criativo, dinâmico, inovador e competente, se não tiver auxiliares do mesmo nível, o setor produtivo não funciona. Então, introduz uma série de variáveis no sentido de que o trabalho produtivo não é só aquele que vem do operário.
O trabalho produtivo é um composto de muitas atividades que se interdependem e interinfluem. Você precisa de engenheiros, projetistas, diretor de pessoal, controle de estoque, controle de matéria prima… A introdução da temática administrativa em Marx é gradual, moderada e pequena. Ele não entendia bem, porque senão jamais poderia vir com essa tese de expropriar os expropriadores. Isso significa que toda parte de comando da empresa tem que passar às mãos do proletário, mas o proletário não está preparado sob o ponto de vista administrativo, de gerência, de ciência da Administração – o que prefiro chamar de arte da Administração.
RBA: O que o senhor acha do conceito de mais-valia?
Nelson Mello e Souza: É um conceito básico de Marx. Quando um capitalista contrata um operário, não contrata o trabalho do operário. Contrata sua força de trabalho. Então ele usa o operário para um determinado trabalho durante oito horas por dia. Nesse período, o operário trabalha duas ou três horas para pagar seu salário. Depois continua produzindo, só que a riqueza já está indo para outro lado. É apropriada pelo capitalista.
Esse foi o cálculo da mais-valia, que é completamente simplista. Não há empresa que não tenha que gerar excedente. Se não, não tem como pagar o custo da matéria prima, das máquinas, energia, estrutura administrativa. Então, não é o capitalista que se apropria de tudo. Ele tem uma parte que é o lucro. A outra parte é para financiar custos gerais do negócio. A empresa gera excedente ou quebra. E se você não vender o produto no mercado, não tem ingresso, nem renda. Vai à falência. Chamo a atenção no meu trabalho para o fato de que não se encontra, em nenhum texto de Marx, um gráfico, estatística, dado ou referência à taxa de falência.
Um autor que recomendo muito é Alfred Chandler Jr. Ele tem dois livros fundamentais, que nenhum estudante de Administração pode deixar de ler: “Estratégia e estrutura” e “A mão invisível”. Ele faz uma análise espetacular de várias grandes empresas.
RBA: Como são as relações de trabalho na atualidade e qual a perspectiva de futuro?
Nelson Mello e Souza: Sinto que a máquina vem ganhando presença cada vez maior e tem influído muito no trabalho. Cada vez mais estamos atrelados a um conjunto de máquinas. Tem que acionar o computador toda hora. Está suplantando o homem pouco a pouco. Procurem ler sobre Inteligência Artificial. É um fenômeno extremamente perigoso, porque pode completar o que Nietzsche falou sobre a morte de Deus. O novo sistema relacional, o materialismo, consumismo, hedonismo, egoísmo fazem com que o homem veja no outro muito mais um objeto manipulável do que um ser igual a ele.
Nietzsche diz que Deus está morto, porque ninguém mais acredita na verdade. Eu digo que, no futuro, poderemos ter uma formulação não sobre a morte de Deus, mas da morte do homem. O ser humano está cada vez mais desumano, indiferente, alienado e isso influirá tremendamente nas relações humanas. Como a máquina está assumindo um papel dominante na produção, quando chegarmos à Inteligência Artificial será difícil.
Qual será o destino do homem? A máquina fará tudo! O homem vai fazer o quê? Que tipo de homem será esse? Ninguém sabe. Outro dia estava com a lista da revista Forbes, dos maiores bilionários do mundo, e há fortunas de 80, 90 bilhões de dólares. É uma concentração de renda que não tem cabimento. Ao mesmo tempo vemos pessoas sem trabalho, sem perspectiva, sem esperança, atiradas ao chão. Há qualquer coisa errada nisso.
RBA: Isso pode ser também reflexo das relações capitalistas?
Nelson Mello e Souza: Não há saída que não seja uma correção da desigualdade de renda. Não se pode impedir ninguém de ganhar dinheiro. Mas uma parte tem de se converter em benefício social. Aportes sociais para proteger, abrir frentes de trabalho, novas atividades ou serviços, etc. Os países mais próximos disso são os escandinavos. Lá há uma forte taxação sobre grandes riquezas e esse dinheiro vai para projetos sociais. O Estado é capitalista, porque não proíbe iniciativa individual, mas é também socialista, porque administra parte disso por meio de instituições públicas.
É uma busca de redistribuição de renda, que parte do princípio de que aqueles que tiveram maior competência ou melhores oportunidades e conseguiram acumular uma fortuna enorme têm que compartilhar com os que não conseguiram e estão na miséria. Enquanto não houver tentativa séria de fazer essa distribuição de renda, não vamos lograr um mínimo de justiça social.
RBA: O senhor se dedica também a mais dois autores, que são Weber e Pareto. Qual é o foco?
Nelson Mello e Souza: O livro sobre Pareto me custou várias amizades. Pareto tem fama de fascista. Desenvolveu a teoria das elites e provava por A mais B que a história nunca foi a luta de classes. O que houve sempre foi a luta entre elites. Essas teses que o pragmatismo de Pareto colocou, criaram para ele uma série de dificuldades e o fato dele ter desenvolvido essa teoria da elite foi mal interpretado por um lado e por outro.
Já Weber foi um dos maiores sociólogos e pensadores do mundo. Ele fez “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, um livro de sociologia do capitalismo. Ao contrário de Marx, ele não vê no capitalismo os grandes absurdos deformadores da personalidade humana. Ele vê isso na indústria.
Então cita uma frase de Goethe, que é mais ou menos assim: ‘especialistas sem coração, sensualistas sem espírito, esta ralé pensa que é a maior sabedoria que já assumiu o planeta. Quanto mais você se especializa, mais você se degrada. Você passa a conhecer cada vez mais sobre cada vez menos’.
No final ele teve sua obra póstuma, que o tornou famoso no ocidente e no mundo da Administração: “Economia e Sociedade”. É aí que ele formula o conceito de burocracia.
Weber foi muito importante. No final teve uma polêmica com Marx muito grande, numa linha parecida com Pareto. A dialética não é a luta de classe, a classe média hoje é muito importante, a polarização de classe praticamente não existe. É um pensador muito moderno, embora seja do princípio do século XX.
Sem dúvida alguma, dos pensadores que abordei, o mais importante para a Administração é Weber. É central, básico. Desenvolve uma série de conceitos-chave que têm uma importância decisiva na formação do magistério, do ensino da Administração.