Preferência por mercado financeiro fragilizou a indústria nacional e tem levado à supremacia de produtos estrangeiros e déficit na balança comercial.
Por Ana Graciele Gonçalves
De acordo com o relatório da ‘Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura’ (FAO), mais de 60 milhões de brasileiros enfrentam algum tipo de insegurança alimentar. A pesquisa analisou dados sobre o Brasil, no período de 2019 a 2021, e revela que mesmo sendo um dos maiores produtores de comida (de origem vegetal e animal) do mundo, a fome ainda é uma constante no país.
A falta de comida no prato é apenas uma das consequências da queda de renda que foi acentuada, sobretudo na pandemia, em virtude da financeirização da economia — fenômeno em que a maior parte dos investimentos e recursos de um país é destinado ao mercado financeiro. O doutor em administração e pesquisador, Mauro Kreuz, diz que já esperava por tal cenário, em razão do aumento significativo de recursos voltados ao setor nos últimos anos.
Segundo Kreuz, que também é presidente do Conselho Federal de Administração (CFA), os recursos que antes eram investidos na indústria (nesse caso, cadeia de produção de bens de consumo), agora são negociados em instituições financeiras e, pior, nem sempre nacionais. Com a financeirização dos recursos, cai a produção interna, o que encarece os produtos, além de por vezes forçar o Brasil a importar alimentos de outros países.
O administrador diz que o sucateamento do setor industrial, decorrente da financeirização da economia, é apenas uma das consequências das péssimas gestões pelas quais o Brasil tem passado nas últimas décadas. Ele critica o atual modelo econômico que, segundo ele, desindustrializou o país e transformou a nação em um exportador de commodities.
“A indústria é uma grande geradora de emprego, renda e, comprovadamente, melhora o padrão de desenvolvimento social. Precisamos é de produção, com geração maciça de mão de obra, emprego e geração de tributos que melhorem as contas públicas e permitam novos investimentos e novas políticas públicas”, defende.
Trajetória
Historicamente, a indústria brasileira foi um setor que sempre contratou milhões de pessoas e desenvolveu as potencialidades econômicas nacionais. Então, como ocorreu a financeirização e o desmantelamento da indústria brasileira?
O doutor em economia e coordenador do curso de ‘Ciências Econômicas’ da Universidade Federal de Goiás (UFG), Everton Rosa, faz um retrospecto para explicar como acontecimentos do passado repercutem no presente. Ele narra que o processo de industrialização nacional passou por várias épocas e governos (Era Vargas, Kubitschek e Governos Militares) e que as crises do petróleo (entre 1973 e 1979) fizeram com que houvesse volatilidade das taxas de câmbio, inflação e juros, o que dificultou a execução de investimentos de longo prazo e dificultou a expansão nacional.
A partir de 1980, a indústria brasileira começou a sofrer reveses. Diferente das potências globais, apesar dos avanços, o Brasil não terminou seu desenvolvimento caracterizado como ‘industrialização tardia’.
Já nos anos 1990, o pesquisador relata que as expressões mais em voga no país eram a ‘liberalização de capital’, ‘desregulamentação financeira’, privatização e desnacionalização de ativos. O pesquisador lembra que o Brasil passou a vender seus ativos empresariais — tanto públicos quanto privados — e tornou-se destino de capitais.
“O mundo passou por várias crises até chegar ao cenário atual e, ainda assim, a ordem mundial continua volátil: com o movimento de capitais especulativos determinando o movimento das taxas de juros e de câmbio de várias economias. Com essa instabilidade, torna-se muito difícil definir horizontes para o investimento de longo prazo, salvo se o Estado assumir os riscos, como acontece na China, mas não do Brasil”, avalia o professor.
Indústria em queda
O processo de desindustrialização precoce do Brasil fez o setor perder o dinamismo, de acordo o doutor em economia e presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Antônio Corrêa de Lacerda. Ele conta que a indústria de transformação, que representava mais de 20% do PIB há duas décadas, caiu para pouco mais de 10% nos últimos anos.
Lacerda explica que nas décadas passadas, sem o devido apoio e investimento, a indústria brasileira perdeu força para competir no cenário internacional. Por outro lado, países como China, Índia, México e Indonésia emergiram como mercados mais atrativos à produção.
Segundo o economista, o aumento desenfreado de importações tomou espaço da produção nacional — um processo danoso não apenas para a indústria em si, mas para o país. Houve perdas de empregos, de renda e de arrecadação de impostos.
“Políticas macroeconômicas equivocadas, com a combinação de juros elevados, taxa de câmbio volátil, carga tributária distorcida e burocracia excessiva foram parte da combinação que nos levou ao cenário atual. A outra parte que tirou a competitividade da indústria brasileira foram os altos custos de logística e mobilidade”, avalia.
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Custo Brasil
As péssimas condições de infraestrutura e mobilidade dificultam a atuação das organizações, além de contribuir para a derrocada do setor industrial. Elas fazem parte do Custo Brasil — conjunto de dificuldades logísticas, burocráticas, econômicas e trabalhistas — que segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI) retiram R$ 1,5 trilhão por ano das empresas instaladas no país e representam 20,5% do PIB.
Segundo Lacerda, o custo compromete os investimentos e contribuem para existir uma excessiva carga tributária. Ele acredita que uma das soluções possíveis é investir em outros modais de transporte (além do rodoviário), bem como fazer uma recalibragem das alíquotas de importação e realizar uma reforma tributária para fortalecer o estímulo à produção local.
Ainda com relação aos tributos, o economista pontua que o problema não gira em torno apenas da tributação dos importados, mas da abertura comercial, com volatilidade do câmbio. Para o economista, falta ao país um ‘Plano de Desenvolvimento Nacional’.
“No médio e longo prazo, é preciso adotar políticas públicas que estimulem a fabricação local de insumos e matérias primas. Sem um plano, as políticas fiscal, monetária e cambial são executadas para atender pressões externas de conjuntura, mas nunca de forma combinada para fomentar a produção e o emprego”, concluiu.