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Muito além da paixão

  • Categoria do post:GESTÃO

Quando ingressou na carreira administrativa, Eduardo Carvalho Bandeira de Mello jamais pensou em se tornar dirigente do maior clube de futebol do país. A única proximidade que tinha com o Flamengo era a paixão de torcedor.

Depois de uma passagem de três anos no Conselho de Administração do clube, Mello assumiu a direção do Flamengo com o compromisso de modernizar a instituição.

Em pouco mais de três anos, Mello conseguiu quitar metade da dívida do Flamengo, pôs em dia a folha de pagamento dos atletas e fez o time saltar do 13o lugar no Campeonato Brasileiro, em 2013, para o terceiro lugar, em 2016.

EDUARDO CARVALHO BANDEIRA DE MELLO, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS, FLAMENGUISTA ROXO E ATUAL DIRIGENTE DO CLUBE CONTA COMO A GESTÃO PROFISSIONAL CONSEGUIU TIRAR O FLAMENGO DE UM COLAPSO IMINENTE

NA ENTREVISTA QUE CONCEDEU À RBA, MELLO CONTA COMO SUA EXPERIÊNCIA ADMINISTRATIVA TEM CONTRIBUÍDO PARA O SUCESSO DO CLUBE.

RBA: O SENHOR PASSOU DE SEGUNDA OPÇÃO DA CHAPA AZUL PARA DIRIGENTE DO FLAMENGO. QUAIS OS DIFERENCIAIS QUE A CHAPA TRAZIA?

EM: Eu entrei como plano B da chapa porque atendia as condições estatutárias necessárias à candidatura. Com a impugnação da candidatura do Wallim Vasconcellos, acabei encabeçando a chapa e fomos eleitos. Isso graças à promessa de profissionalizar o clube.

Nossa proposta, desde o início, foi de ter uma diretoria exclusivamente profissional, com profissionais recrutados do mercado por mérito e que se dedicariam exclusivamente ao Flamengo. Já os vice-presidentes, que são cargos políticos, comporiam uma espécie de Conselho de Administração, que é o conselho diretor. A eles ficaria o trabalho no plano estratégico, definindo diretrizes, metas, além de cobrar resultados, mas sem interferir diretamente no dia a dia do clube. Com a eleição da nossa chapa, colocamos este projeto em prática desde os cinco minutos do primeiro tempo.

RBA: COMO FOI SUA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL ATÉ CHEGAR AO FLAMENGO?

Eduardo Mello: Eu trabalhava desde a época da faculdade e passei por diversas empresas como o grupo Atlântico Boa Vista, Grupo Bozano e a Veplan Residências. Depois de me formar, optei por largar o trabalho para me dedicar ao mestrado em tempo integral e, antes mesmo de defender a tese, houve um concurso para o BNDES. Eu fiz e tive a felicidade de ser chamado imediatamente. Lá fique de fevereiro de 1977 até 2013.

RBA: ANTES DE ASSUMIR A DIREÇÃO DO CLUBE, O SENHOR FEZ PARTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO. COMO ISSO AJUDOU A AMPLIAR SEUS CONHECIMENTOS SOBRE O SETOR ESPORTIVO?RBA: ANTES DE ASSUMIR A DIREÇÃO DO CLUBE, O SENHOR FEZ PARTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO. COMO ISSO AJUDOU A AMPLIAR SEUS CONHECIMENTOS SOBRE O SETOR ESPORTIVO?

EM: Fui convidado a participar de uma chapa que concorria à direção do clube e propunha a criação de um conselho de administração. A chapa foi eleita e eu fiquei três anos participando das reuniões do Conselho, cuja principal função é basicamente aprovar orçamento e operações de crédito. Ali eu pude ver as coisas mais de perto.

Antes, como torcedor, eu acompanhava pelo noticiário para saber o que acontecia com o clube. Como membro do Conselho Deliberativo, também acompanhava as reuniões, mas isso não me dava poder de decisão. Então em 2013, quando assumi a direção, posso dizer que começou realmente minha experiência como administrador esportivo.

RBA: QUANDO O SENHOR ASSUMIU A PRESIDÊNCIA, O FLAMENGO ACUMULAVA CERCA DE R$750 MILHÕES EM DÍVIDAS. COMO O CLUBE CHEGOU NESTE PONTO?RBA: QUANDO O SENHOR ASSUMIU A PRESIDÊNCIA, O FLAMENGO ACUMULAVA CERCA DE R$750 MILHÕES EM DÍVIDAS. COMO O CLUBE CHEGOU NESTE PONTO?

EM: As dívidas do Flamengo, além de enormes, tinham um perfil absolutamente inadequado. Boa parte estava vencida e era com o setor público: basicamente se tratava de dívida tributária e previdenciária. O clube estava numa situação absolutamente incontrolável, que gerava penhora de praticamente todas as receitas. Além disso, tinha uma dívida trabalhista muito grande, com centenas de processos na Justiça do Trabalho, além da dívida bancária. Tudo isso em meio a uma crise de credibilidade, o clube era visto, e com razão, como um mau pagador, que não cumpria seus compromissos.

RBA: COMO FOI O TRABALHO PARA TIRAR O FLAMENGO DE UMA SITUAÇÃO TÃO CRÍTICA E DELICADA?

EM: A dívida tributária era o que mais nos afligia. Começamos a trabalhar junto com a Procuradoria da Fazenda Nacional e tivemos que cortar na carne: dispensar jogadores, atletas olímpicos. Era preciso fazer um ajuste muito rigoroso, dramático, para poder gerar recursos e pensar em começar a pagar aquela dívida.

Eu me lembro da primeira vez que tive que me dirigir aos jogadores do Flamengo. Logo no dia da minha posse, eles estavam se reapresentando e nós devíamos três, quatro meses de salários para eles.

Falei com os atletas. Expliquei que aquela situação me enchia de vergonha, pois trabalhei numa empresa que nunca atrasou qualquer salário meu, em 36 anos. Disse que aquilo era inadmissível, ainda mais em um clube que têm 40 milhões de torcedores, e prometi que faríamos todo o esforço possível para reverter a situação. Acabamos conseguindo. Alguns meses depois, nós já estávamos com os salários dos jogadores em dia, coisa que perdura até hoje.

RBA: NUMA ENTREVISTA RECENTE, O SENHOR AFIRMOU QUE O CLUBE ENCERRARIA O ANO COM UMA DÍVIDA ABAIXO DOS R$400 MILHÕES. EM QUATRO ANOS DE SUA GESTÃO, QUASE METADE DA DÍVIDA QUE HERDOU QUANDO ASSUMIU FOI SANADA. A QUE O SENHOR ATRIBUI ESTA CONQUISTA?

EM: Isso é mérito de todo mundo, de toda a equipe. Todos estão remando para o mesmo lado. Afinal de contas, o Flamengo é um clube de regatas e eu acho que não podia ser diferente.

O Flamengo tem 40 milhões de torcedores e isso nos dá uma responsabilidade muito grande para andar na linha. Conseguimos diminuir esta dívida pela metade fazendo uma série de sacrifícios que, até para minha surpresa, foram endossados pela maioria da torcida. Hoje, o Flamengo está praticamente autossustentável.

RBA: A VONTADE DE RECUPERAÇÃO DA INSTITUIÇÃO ESPORTIVA DO FLAMENGO SE REFLETE TAMBÉM NOS ATLETAS DO CLUBE?

EM: Não tenho a menor dúvida disso. Eu acho que a postura dos atletas é um reflexo do exemplo que eles têm. Hoje em dia, vemos os jogadores do Flamengo totalmente engajados nesse esforço, preocupados com a credibilidade, com a imagem do clube e se dedicando. Isso é contagiante.

RBA: QUAIS SÃO AS CONDUTAS MAIS IMPORTANTES, FUNDAMENTAIS, NA GESTÃO ESPORTIVA, ATUALMENTE?

EM: É fundamental reconhecer que o esporte de hoje, o futebol de hoje, é um negócio extremamente complexo. Então, ele tem que ser administrado com a responsabilidade que os negócios complexos requerem. Para isso, é preciso se cercar do que existe de melhor, não só em termo de pessoal, mas também de recursos técnicos, de informática e acabar com aquela visão de que futebol é simplesmente prazer e diversão. É diversão, e é uma diversão ótima para quem está assistindo. Para quem está administrando é um trabalho extremamente complexo e árduo. E a administração de um clube de futebol, hoje, envolve uma série de competências e de habilidades que não podem ser negligenciadas.

RBA: NOS ESTADOS UNIDOS E NA EUROPA, ATUALMENTE, SE ENCARA A GESTÃO DE UM CLUBE, A ADMINISTRAÇÃO ESPORTIVA EM SI, COMO A GESTÃO DE UMA EMPRESA. NO BRASIL, O SENHOR ACHA QUE ESTÁ COMEÇANDO A ACONTECER ESSE TIPO DE COISA?

EM: No Flamengo com certeza já é assim. Eu tenho a impressão que todos os clubes que não seguirem este caminho no Brasil ficarão perdidos no tempo. A era da irresponsabilidade nos clubes de futebol acabou. O PROFUT inclusive transformou isso em Lei. Mas nem precisaria ser lei, bastaria ser uma determinação, uma política ou uma postura dos clubes.

O Flamengo, por exemplo, quando saiu a Lei do PROFUT já cumpria todas as contrapartidas muito antes delas virarem regra. A gente entende que elas são fundamentais para que o Clube sobreviva e tenha sucesso. Então, quem não andar na linha vai ficar pelo caminho. É um movimento que veio para ficar.

A ERA DA IRRESPONSABILIDADE NOS CLUBES DE FUTEBOL ACABOU
ADM. EDUARDO MELLO

RBA: SE UM ESTUDANTE TE PERGUNTASSE O QUE É PRECISO PARA SER UM BOM GESTOR ESPORTIVO,O QUE SENHOR RESPONDERIA?

EM – É preciso ser um administrador completo, não existe receita de bolo. Acho que não existe aquela coisa de ‘faça um curso de gestão esportiva e no final você vai levar o diploma, você vai ser o melhor possível’. Acredito que quando um estudante cursa Administração, ele não faz o curso pensando em administrar um banco, uma indústria ou uma unidade de varejo.

Você faz o curso pensando em reunir técnicas e competências para administrar o que você tiver pela frente. E você não pode nunca parar de estudar, você vai ter que sempre se desenvolver, se qualificar para conseguir enfrentar os desafios que virão pela frente. A área esportiva é mais um nicho e é claro que existem habilidades específicas que podem e devem ser desenvolvidas, mas antes de tudo é preciso ser um bom administrador.

PODER CONTRIBUIR COM SUCESSO DO CLUBE E PARA GRANDEZA DO FLAMENGO, ISSO ME DÁ UMA SATISFAÇÃO MUITO GRANDE
ADM. EDUARDO MELLO

RBA: LOGO NO INÍCIO DA CARREIRA, O SENHOR JÁ ASPIRAVA TRABALHAR NA ÁREA DE ADMINISTRAÇÃO ESPORTIVA?

EM: Nunca pensei em trabalhar com este nicho porque, quando eu era mais jovem, a administração esportiva era muito incipiente. Futebol era um negócio extremamente simples. Os clubes viviam praticamente de bilheteria.

Sempre fui apaixonado pelo Flamengo e sempre acompanhei o futebol, mas a distância. Não havia muito campo para um jovem iniciando a carreira enveredar por esse lado esportivo. Estamos falando dos anos 1970. Acabei me tornando presidente do Flamengo praticamente na hora em que eu estava me aposentando.

RBA: A EXPERIÊNCIA NO BNDES AGREGOU MUITO CONHECIMENTO PARA SUA ATUAÇÃO NO FLAMENGO?

EM: Com certeza. Foi praticamente uma vida dentro do BNDES, onde passei por várias áreas e tive a oportunidade de conhecer muitas empresas através dos projetos que eu analisava. Isso me deu vivência e pude conhecer como funcionava boa parte das empresas. Quando cheguei ao Flamengo, já era um administrador experiente e com grande conhecimento do funcionamento das empresas brasileiras. Isso, com certeza, está me ajudando muito hoje.

RBA: SUA GESTÃO, NO INÍCIO, SOFREU ALGUMAS CRÍTICAS, PRINCIPALMENTE PELO FATO DE CORTAR ATÉ ATLETAS DO QUADRO PARA PODER SANAR AS DÍVIDAS. COMO O SENHOR ENCAROU ESSAS CRITICAS NA ÉPOCA?

EM: Com naturalidade porque é uma questão de postura, de ponto de vista. Tem gente que até hoje defende que o clube deve se endividar de maneira irresponsável, que deve fazer o sacrifício que for necessário para reforçar o time, sem se preocupar como vai pagar aquilo depois. Infelizmente, até hoje, tem gente que defende isso.

O Clube é muito grande e essas críticas que eu sofria eram de dentro. Um bom exemplo é o caso das certidões negativas. O Clube não as tinha e, para consegui-las de volta, fizemos um acordo com a Procuradoria da Fazenda Nacional. Tivemos que pagar R$ 80 milhões em dívidas.

Com as certidões, em ordem, conseguimos fechar um acordo de patrocínio com a Caixa Econômica Federal de R$ 25 milhões por ano. Teve um conselheiro do clube que me chamou de otário em público, porque eu tinha pagado R$ 80 milhões para receber R$ 25 milhões. Ele fez a conta: 80 é mais do que 25. Então, infelizmente tem gente que acha isso até hoje, vai ter sempre, mas é minoria. Com certeza, não representam os 40 milhões de rubro-negros que têm orgulho, hoje, em ter o seu clube sempre citado como exemplo de boa administração, transparência e de sucesso na área de gestão.

RBA: QUAL É A PERSPECTIVA PARA OS ÚLTIMOS ANOS DO SEU MANDATO? ONDE O SENHOR ACHA QUE O CLUBE ESTARÁ NO SEU ÚLTIMO ANO COMO PRESIDENTE?

EM: Com certeza vai estar bem melhor do que estamos hoje, assim como 2017 está sendo melhor que 2016, que foi melhor que 2015 e assim por diante. Eu acho também que o trabalho não para quando terminar o meu mandato, no final de 2018. Virá alguém do nosso grupo, que vai assumir o meu lugar e o Flamengo vai continuar essa trajetória de crescimento rumo à excelência em todos os sentidos.

RBA: COMO O SENHOR SE SENTE COMO PROFISSIONAL E COMO TORCEDOR DO FLAMENGO, NA POSIÇÃO QUE OCUPA HOJE E VENDO TODA A REPERCUSSÃO QUE TEM TIDO A SUA GESTÃO?

EM: Eu acho que é motivo de muito orgulho o que nós estamos fazendo aqui no Flamengo. Participar desse processo, para mim, é uma coisa inimaginável, em termos de satisfação pessoal e, principalmente, quando você está administrando algo que é a coisa mais importante da sua vida, depois da sua família.

O Flamengo sempre foi isso: depois da minha família, é o que existe de mais importante na minha vida. Então, poder contribuir com sucesso do clube e para grandeza do Flamengo, isso me dá uma satisfação muito grande.

Sâmar Razzak

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