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O mal do século e das empresas

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Até 2020, a depressão será uma das doenças mais incapacitantes do mundo, segundo previsão da organização mundial da saúde (oms). Quando ela nasce no ambiente corporativo, as consequências não são nada boas.

Todos os anos, a depressão afasta milhares de pessoas do trabalho. Em 2016, 75 mil trabalhadores acabaram deixando seus postos no país por conta da doença, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa quantidade representa 37,8% das licenças com auxílio-doença motivadas por transtornos mentais e comportamentais, que incluem também o estresse, a ansiedade, o transtorno bipolar, a esquizofrenia e casos relacionados ao abuso de drogas.

A Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt) faz levantamentos mensais sobre concessão de benefícios de auxílio-doença. O dado que chama a atenção no comparativo entre os anos de 2015 e 2016 é o aumento no número de licenças em 2016, ano em que o desemprego cresceu. Houve Mara Andrich O MAL DO SÉCULO… e das empresas aumento de 17% nas licenças não relacionadas a trabalho e de 15% nas licenças associadas a acidentes de trabalho. Dentro desses 15%, os afastamentos por transtornos mentais subiram 20 pontos percentuais.

Subnotificados ou não, o número de afastamentos indica que a depressão e outras doenças comportamentais vêm crescendo no país. O fato preocupa não só os empresários – que passam a contar com menos profissionais e, consequentemente, sofrem queda na produtividade e nos ganhos –, mas também especialistas da área médica, da psicologia e, evidentemente, as próprias pessoas que sofrem de um mal difícil de diagnosticar e de combater.

DESAFIO PARA A GESTÃO

Quando se fala em doenças desenvolvidas no trabalho, há que se pensar que elas representam um grande desafio para a gestão. A depressão é uma realidade crescente, segundo os estudos. No caso das empresas, a consequência da patologia se destaca na pouca produtividade dos profissionais adoecidos – quando conseguem permanecer trabalhando – ou no pleno afastamento de suas funções.

Os especialistas explicam que é preciso ter em mente duas situações diferentes que podem ocorrer quando o assunto é depressão: a primeira acontece quando o funcionário está satisfeito com o ambiente de trabalho e com sua profissão, porém, não se sente motivado para desempenhar suas tarefas. Na segunda situação ocorre o contrário: o funcionário sente motivação, mas não está mais se sentindo disposto para trabalhar naquela empresa.

A depressão pode ser decorrente das duas situações descritas acima e também de fatores externos ao trabalho. É o que explica a coordenadora do curso de Gestão de RH da Universidade Positivo, Deise Hofmeister. É por isso que o gestor precisa trabalhar junto aos seus colaboradores a questão humana, entendendo o momento que cada pessoa está passando. “Hoje, os gestores confundem a desmotivação com má vontade. E não é assim. O gestor precisa se aproximar das equipes de maneira mais sincera, mais humana, o ambiente profissional exige isso. E hoje o que vemos é um ambiente profissional frio”, avalia Deise.

Outra grande questão que se vê hoje é que muitas empresas sequer estão se dando conta do problema que envolve a depressão. Muitas delas tratam a doença nos ambientes corporativos como uma exceção. Na opinião do presidente do CFA, Wagner Siqueira, essa é uma visão totalmente equivocada. Ele lamenta que uma doença do trabalho tão grave seja ignorada e lembra que outros países já enfrentam essa realidade com muito mais afinco do que o Brasil, até mesmo com muitos processos judiciais.

A questão do individualismo, dos resultados pessoais, tão fortes hoje nas organizações brasileiras, deveria ser repensada, na visão de Siqueira. Para ele, o individualismo só alimenta conflitos, confrontos, competições e desentendimentos, tudo que pode causar doenças do trabalho. O problema é que isso não vem ocorrendo. “As organizações falam tanto em trabalho em equipe, na cooperação, mas cobram cada vez mais o individualismo, fomentam isso e estão se comportando como se estivessem voltando ao tempo das cavernas”, lamenta.

A professora Deise também acredita que as empresas estão criando ambientes cada vez mais prejudiciais, deixando seus funcionários em situações de escolhas muito difíceis. Ou seja: o gestor até se atenta para o problema das doenças; no entanto, prioriza as metas, os resultados, e não as pessoas. Sendo assim, é urgente, na opinião da professora, a consciência por parte dos gestores de que se deve investir mais nos processos de engajamento, nas avaliações de desempenho com foco em motivação e satisfação e dar mais atenção à linguagem corporal das pessoas e às relações interpessoais no ambiente de trabalho.

Existem estudos que indicam que em grupos nos quais há pessoas com menos afinidade os resultados acabam sendo menores. Mas a que preço se consegue isso? Para Deise, é preciso saber lidar com isso para que haja pessoas mais satisfeitas dentro da equipe. “É preciso olhar para as pessoas de uma forma mais humana, verificar o que elas sabem fazer melhor e também considerar os fatores externos”, avalia.

LIDERANÇAS COM OLHO NO FUTURO

A nova geração valoriza práticas de gestão, relacionamento e lideranças diferentes das que hoje lideram as empresas. É preciso mais colaboração e menos imposição, mais partilha e menos setorização e, acima de tudo, empresas mais humanas com projetos sonhadores e ambiciosos. É o que defende Luis Rasquilha, CEO da AYR Consulting Worldwide e da Inova Business School. “Colaboração, participação, visibilidade e integração são palavras-chave do líder do futuro, que busca o equilíbrio de todos e entre todos. Em simultâneo precisamos ser mais criativos, correr mais riscos e pensar mais fora da nossa normal zona de conforto”, afirma.

Algumas startups e outras empresas já estenderam o olhar e pensam nessa saída da zona de conforto há tempos. Criaram salas de descompressão, horários flexíveis para entrada e saída, para fazer refeições, enfim, algumas mudanças nas relações de trabalho com o intuito de melhorar também as relações interpessoais. Claro que o foco é produtividade, mas há que se considerar que a liberdade com responsabilidade pode dar resultados, segundo o consultor de RH e professor da área de planejamento de carreiras da FAE Centro Universitário, Emílio Paiva.

O professor, que também já foi gestor e hoje tem uma empresa de treinamentos, vê essas mudanças com bons olhos. “Claro que não se pode ter ilusões. As empresas criam essas relações porque querem que seu funcionário esteja bem e, consequentemente, produza mais. Mas muitas vezes não é o relógio que vai orientar a produção”, observa. O professor lembra que a depressão muitas vezes ocorre porque a pessoa não se sente mais dona de si, sente que não faz mais escolhas de acordo com suas vontades. “Quando ele tem uma autonomia maior, a tendência é a diminuição de doenças”, lembra.

SUICÍDIO: INSATISFAÇÃO AO EXTREMO

Outro problema grave e que pode ser consequência da depressão no trabalho é o suicídio. Wagner Siqueira alerta para essa questão e observa que é apenas uma parte do problema. Para ele, as sequelas de uma depressão, as síndromes do pânico, os dramas psicossociológicos, a “morte psicológica”, enfim, as consequências drásticas que uma depressão pode causar são muito graves e precisam de mais atenção por parte das empresas.

Exemplos de casos de suicídio nas organizações são vistos com frequência na Foxconn, gigante de Taiwan fabricante de iPhones e iPads, entre outros equipamentos eletrônicos. Entre 2010 e 2013, ocorreram pelo menos 18 casos semelhantes de trabalhadores que tentaram suicídio (sendo que 14 efetivamente conseguiram).

 Em um dos casos de 2011, um jovem de 20 anos pulou de seu apartamento, situado em um bairro próximo ao parque industrial da companhia. Outra trabalhadora de 25 anos que estava há seis anos atuando em uma fábrica da Foxconn também se jogou do prédio onde vivia após receber um e-mail no qual solicitavam que ela pedisse demissão.

 A denúncia desse tipo de prática também deve ser incontestavelmente discutida nas relações interpessoais e na gerência das organizações, pois só assim poderão ser combatidas a contento, na visão de Wagner.

O site TecMundo publicou uma reportagem em junho de 2017 sobre Brian Merchant, repórter do jornal The Guardian que lançou um livro chamado “The One Device: The Secret History of the iPhone”. Ele visitou o local e conversou com funcionários e ex-trabalhadores da fá- brica, que fizeram várias reclamações, como jornadas de trabalho de 12 horas e assédio moral. Segundo um ex-trabalhador da Foxconn entrevistado por Merchant, as tentativas de suicídio foram muito mais numerosas do que as 18 reportadas pelas autoridades.

Em 2012, a Foxconn anunciou que daria um aumento entre 16% e 25% aos seus funcionários. A empresa era acusada por várias ONGs de explorar excessivamente os funcionários e de desrespeitar leis trabalhistas na China. Um grupo de funcionários que trabalhava na linha de montagem do videogame Xbox 360 chegou a se rebelar e ameaçar suicídio coletivo. Os empregados reclamaram do excesso de sujeira nas fábricas, da falta de treinamento para operar máquinas perigosas e do parcelamento de seus salários que, em tese, deveriam ser pagos à vista. O protesto terminou sem mortes, mas 45 trabalhadores decidiram pedir demissão após a crise. Em 2014, os empregados entraram em greve na China, novamente, protestando contra os baixos salários.

Recentemente, em novembro de 2017, a Apple admitiu que um grupo de estudantes com idades entre 17 e 19 anos estava excedendo a carga horária de estágio em uma fábrica da Foxconn, na China, durante a produção do iPhone X, o mais recente do mercado.

PARA SABER MAIS – LIVROS:

A LOUCURA DO TRABALHO – ESTUDO DE PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO

(Christopher Djours)

No livro “A Loucura do Trabalho – Estudo de Psicopatologia do Trabalho”, o autor ressalta que o corpo é a primeira vítima do sistema rígido de produção e, em seguida, seria o aparelho psíquico. Na obra, ele traz algumas investigações acerca de estratégias (individuais e coletivas) que os trabalhadores utilizam para enfrentar os problemas no trabalho e as doenças mentais que são causadas por eles. O autor diz ainda que para ocorrer uma evolução da relação saúde mental e trabalho é necessário um duplo movimento: de transformação da organização do trabalho e de dissolução dos sistemas defensivos.

GESTÃO COMO DOENÇA SOCIAL – IDEOLOGIA, PODER GERENCIALISTA E FRAGMENTAÇÃO SOCIAL

(Vincent de Gaulejac)

Uma reflexão sobre a relação entre saúde e condições de trabalho. Esse é o propósito da obra de Gaulejac, que trata dos mecanismos de dominação dos modelos de gestão capitalistas. Nos capítulos, o autor discorre sobre o modelo de gestão relacionado com poder; depois, os motivos que teriam levado a sociedade a escolher determinado modelo de gestão e os paradoxos criados por ela em meio às violências “simbólicas” trazidas pelas novas relações de trabalho, com regras mais flexíveis. O autor menciona ainda que diversas doenças atingem os empregados e desempregados e lembra que, muitas vezes, o estresse não é considerado um problema, mas algo “natural”, cabendo a cada pessoa administrá-lo da melhor maneira possível. Ou seja: os cuidados de si mesmo seriam a solução para problemas que a gestão é quem cria.

A NEUROSE DE CLASSE – TRAJETÓRIA SOCIAL E CONFLITOS DE IDENTIDADE

(Vincent de Gaulejac)

Quanto mais as sociedades se desenvolvem, mais as tensões psíquicas se tornam fortes. Essa é uma das conclusões de Vincent de Gaulejac no livro “A Neurose de Classe”, obra que traz informações sobre essas evoluções ocorridas em âmbitos social, cultural e econômico em diferentes nações e como cada uma delas afeta as tensões diárias que as pessoas vivem. No enfoque central do livro, o autor traz reflexões sobre como o indivíduo procura tornar-se sujeito de sua pró- pria história, levando ao leitor uma compreensão melhor de si mesmo e do mundo em que está inserido.

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