Cidades com pouca infraestrutura e grandes problemas socioeconômicos contratam shows milionários e aplicam indevidamente os recursos governamentais.
Rodrigo Miranda
O pequeno e pacato município de São Luiz, em Roraima, que fica a cerca de 300 quilômetros da capital Boa Vista, tem apenas 8.232 habitantes. Mesmo assim, virou assunto no país inteiro em razão de algo um tanto inusitado: a cidade receberia um show do cantor Gusttavo Lima.
Até aí nenhum alarde, exceto pelo fato de o artista ter um dos cachês mais caros do Brasil. Para fazer a apresentação, a cidade se comprometeu a desembolsar R$ 800 mil para custear o evento, porém possui arrecadação exata de R$ 801.485,07 – segundo dados do IGM/CFA, ferramenta que coleta dados diretamente no município dos portais de transparência governamentais.
Para a mesma festa ainda foram contratados os shows da dupla César Menotti e Fabiano, por R$ 150 mil, e da cantora Solange Almeida, por R$ 108 mil. Ao todo, só com apresentações musicais, o município pretende gastar mais de R$ 1 milhão.
O valor chamou atenção do Ministério Público de Roraima (MP-RR), que entrou com ação na Justiça para cancelar a apresentação dos artistas. O promotor e autor do pleito, Joaquim Eduardo dos Santos, destacou que o valor investido não trará qualquer benefício à população e vai agravar ainda mais a situação financeira.
A investigação feita pelo MP-RR apontou, ainda, que o pagamento seria irregular. A prefeitura não teria realizado procedimento para averiguar a disponibilidade orçamentária.
“Na atual situação do Município de São Luiz, havendo em curso outras ações civis públicas para melhoria no abastecimento de água e nas unidades de saúde, não pode o Poder Executivo alocar os recursos públicos para contratação de evento artístico. O Ministério Público não tem nada contra a realização do evento festivo, (mas) busca judicialmente que não ocorra estrangulamento das contas públicas e lesão à ordem econômica”, diz trecho da ação.
Regras
O professor de direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Fabrício Macedo, analisou o caso e explica que a realização de shows com verba pública não é irregular, desde que sejam respeitados critérios básicos de contratação. Ele diz que existem recursos com destinação constitucional obrigatória, sujeito a valores mínimos, tal como ocorre nas áreas da Saúde e Educação, e que devem ser respeitadas as finalidades para as quais os recursos foram destinados.
Segundo Macedo, que também é conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do estado de Goiás, a contratação de artistas deve obedecer ao que está disposto na lei orçamentária local e deve ser proporcional à previsão e disponibilidade de recursos. Já de acordo com os mecanismos de contratação utilizados pelas prefeituras, nesse caso, é preciso procurar o artista, realizar a negociação, e se houver justificativa de que só há um fornecedor possível para realizar o serviço — no caso, o cantor escolhido — aí poderá finalizar o contrato sem a necessidade de licitação.
A prefeitura ainda costuma acertar, na contratação, o pagamento de despesas como hotel, transporte e alimentação para toda a equipe do artista. Macedo destaca que não há impedimento legal para que os municípios criem as próprias regras nesse tipo de contratação, mas o gasto pode ser questionado por órgãos como Ministério Público, Poder Legislativo e até o Tribunal de Contas.
“Fora dessas situações, o controle que se faz é de proporcionalidade. Como justificar a prioridade para shows quando existem diversos problemas básicos na saúde e educação?”, questiona.
Raio X
Para entender melhor a realidade de São Luiz-RR, é preciso recorrer aos números do município, extraídos do ‘Índice de Governança Municipal (IGM/CFA de 2022)’. A cidade investiu mais nos cachês de artistas do que em áreas essenciais como infraestrutura urbana, programas habitacionais e assistência à criança e ao adolescente.
Os últimos dados disponíveis apontam que os gastos com infraestrutura no município roraimense foram de pouco mais de R$ 424 mil, enquanto os de programas habitacionais foram de R$ 757 mil. Já com assistência à criança e ao adolescente, foram de R$ 263 mil.
Para Fábio Macedo, conselheiro federal e diretor de Gestão Pública do CFA, órgão responsável pelo IGM, a ferramenta é um importante recurso de fiscalização pública. Além de ser gratuita, ela proporciona conferir a realidade do próprio município e cobrar as autoridades para que os problemas sejam resolvidos.
O diretor ainda ressalta que 2022 é o momento apropriado para refletir sobre o cenário atual do país, em relação à gestão municipal. Sobretudo, quando o dinheiro público pode ser utilizado apenas para questões eleitoreiras e não visar ao benefício da região a curto, médio e longo prazos.
“A União, estados e municípios precisam compreender a importância da boa gestão e governança para que ocorra o devido desenvolvimento nacional de um país rico como o Brasil. Infelizmente, há séculos o patrimônio é dilapidado pela lei da vantagem, ou do toma lá dá cá — sempre com pessoas se locupletando da nação com ausência total de caráter ético-profissional”, sentencia.