Além das consequências físicas, o uso abusivo de apetrechos tecnológicos pode impactar de forma negativa na formação dos futuros profissionais
O uso indiscriminado da tecnologia tem causado dependentes digitais cada vez mais precoces. Helena (nome fictício) prefere não contar o próprio nome para preservar a privacidade do filho. Há pelo menos três anos, ela trava uma batalha para ajudar o menino, hoje com 16, a se livrar do vício por Internet e jogos. Ela, que conviveu com um irmão dependente químico, começou a ver no filho características semelhantes e resolveu procurar ajuda profissional.
O caso de Helena, hoje, não é uma exceção. Há um ano e meio, ela frequenta as reuniões do grupo de dependências tecnológicas do Ambulatório de Transtornos do Impulso, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo.
“Lá eu consegui entender melhor o que estava acontecendo dentro da minha casa. Meu filho já não dormia, trocava o dia pela noite, mentia, começou a ir mal na escola. Minha reação foi agir com violência, tomando celular, quebrava, doava. Nada disso ajudou. Parei de trabalhar para poder acompanhar de perto, controlar e não permitir que ele se viciasse ainda mais”, conta.
Helena é mais um caso entre diversos testemunhados por Sylvia Van Enck, psicóloga do programa. O grupo do HC promove rodas de conversas semanais – somente para adultos – para discutir como uma simples distração (jogos, seriados de TV ou acesso a redes sociais) se transformou em um problema na vida de todos.
“Nossa proposta é ajudar as pessoas a identificarem o porquê do hábito de estarem conectadas a tecnologias se transformou em vício. Não queremos que se abandone o uso. O intuito é abordar questões emocionais e ensinar a controlar para que isso flua em harmonia com a vida real”, explica.
No Rio de Janeiro, o Instituto Delete, ligado ao Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também trata de dependentes digitais. Anna Lucia King, doutora em saúde mental e fundadora do grupo, conta que a ideia de criar o Instituto nasceu em 2013, depois da procura de pacientes que se diziam viciados em tecnologia ter aumentado de maneira muito rápida.
Para a pesquisadora, o maior problema quando se trata de uso inadequado ou abusivo de Internet, celulares, jogos ou qualquer outro apetrecho tecnológico é a falta de educação. “Percebemos uma grande e generalizada ‘falta de educação digital’. As pessoas, ao invés de conviverem em grupo, ficam mexendo no celular. Isso pode ser durante um almoço em família, uma saída entre amigos”, afirma.
Quando se trata de crianças, o problema fica ainda mais sério. Anna afirma que uma pessoa abaixa a cabeça de 80 a 100 vezes por dia para olhar a tela do celular. Considerando estes movimentos durante um mês, são cerca de 2800. “Uma criança que faça isso repetidamente durante 10 anos, quando estiver com 20 terá problemas na coluna cervical iguais a de um idoso. Por outro lado, teremos ainda todas as consequências sociais deste isolamento causado pela tecnologia”, completa Anna.
CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS – Os pesquisadores afirmam que esta redução da vida em grupo gera insegurança e timidez, que podem afetar a vida destes jovens no futuro. “A criança precisa socializar, desenvolver a capacidade de viver em grupo. Como esses jovens têm se relacionado mais pelas redes, acabam não desenvolvendo algumas capacidades que desenvolveriam se tivessem convivido com grupos, de forma natural. Isso causa timidez excessiva e o problema se instaura quando a timidez vira fobia”, alerta.
Para a especialista, a responsabilidade por controlar e dosar o acesso à tecnologia é toda dos pais. “O que mais vemos são casas com wifi, computador nos quartos, tablets, uso ilimitado. Mas isso não pode transcorrer desta forma. É preciso impor limites, não deixar que a criança durma tarde para ficar na Internet, por exemplo. Às vezes, poucas regras já resolvem um problema antes que se torne grande demais”, afirma.
Em São Paulo, como o grupo do HC é restrito para maiores de 18 anos, observa-se uma grande procura de pais ou familiares de crianças e adolescentes que estão perdendo o controle. De acordo com Sylvia, o problema da dependência começa quase sempre com os jogos. Segundo ela, os jogos são programados para se tornarem viciantes: o jogador é estimulado a passar de fase, vencer etapas para evoluir. Quando não há controle, em pouco tempo se troca o dia pela noite, as crianças não conseguem acordar cedo para ir à escola ou, quando vão, perdem muito do rendimento escolar.
Quando o problema já está instalado, a orientação dos especialistas é não se distanciar dos filhos ou os afrontarem. “Muitos pais, quando percebem a impotência deles diante do estímulo gerado pela tecnologia, acabam tendo atitudes violentas, como quebrar o computador, tomar o celular, desconectá-lo totalmente. Essas atitudes podem gerar respostas agressivas por parte dos filhos provocando uma escalada de desordem dentro de casa”, alerta Sylvia.
“É importante que os pais aprendam a compreender o momento. Eles também viveram épocas de conflito com seus pais. Querendo ou não, são coisas próprias da idade. Abrir um espaço de comunicação, se interessar pelo que o filho está fazendo, estabelecer regras, criar agenda de atividades, pode ajudar”, orienta a especialista.
Uma das estratégias adotadas por Helena para conscientizar o filho sobre o vicio em tecnologia foi levá-lo a reuniões de dependentes químicos . “Foi bom ele participar porque pôde ver como aquele vício afetou a vida daquelas pessoas. E, em casa, seguimos com um trabalho de formiguinha, ocupando a agenda dele com outras atividades, monitorando para evitar recaídas e torcendo para que, à medida que ele amadureça, vá se conscientizando sobre a importância de usar esses apetrechos tecnológicos de forma consciente”, conta.